sábado, 9 de julho de 2011

Violino

Da cama, ele ouvia o som do chuveiro ligado. Aborrecia-se. Era, de nascença, homem rancoroso. Subitamente, ouvia algo diferente do som das gotas caindo. Ouvia... Será? Será mesmo?... Um violino! Haveria um violino no banheiro? Ficou confuso. Abriu lentamente a porta para ver o que se passava. Não havia violino algum. Não era nada que não a voz dela, a melodiar e dançar por entre as gotas d'água. Algo parecia-lhe estranho, não parecia ela a mesma. Naquela situação, naquele contexto, a lavar os cabelos e cantarolar tão linda música com voz de violino, ele sentia-se menos aborrecido. Mais... mais... como diria?  Mais apaixonado. Não o vira, ela estava de costas, dentro do box, a lavar os negros cabelos. Cantava. Mais uma vez, ela não parecia a mesma. Parecia-lhe mais bonita, mais meiga do que quando entrara por sua porta. Era linda demais para parar de se observar. Então, por não conseguir, observou-a no banho, de costas, atá que ela terminasse. Chegado tal momento, Ela se virou para desligar a torneira. Berrou.
-O que faz aqui? Fora! Fora!
-Ei, calma, mulher. -respondeu tremendo- qual é o problema? Não acabamos de nos amar faz 10 minutos? Qual o problema de eu te ver no banho?
-Não temo pelo meu corpo, crápula. Temo pela minha voz, não é a ninguém permitido que me ouça cantar -Mas por que, vadia? Então por que você cantava logo na MINHA casa, no banheiro que EU te cedi?-começava a enfurecer-se.
-Porque me agradou a ideia, enfim, não lhe interessam os motivos. Obrigada pelo banheiro, agora me dê o que me pertence.
-Quer dizer o dinheiro? Eu não te paguei extra pra me chamar de crápula, sua p*** de m****.
-Nem eu vim aqui às seis da manhã pra você me chamar de vadia e me ouvir cantar. Estou indo embora.
-Ei, calma. É que eu estava me sentindo sozinho, você tem agenda para essa semana ainda?
-Já te falei, cobro caro e tenho agenda lotada. Não te quero ver nunca mais. Me dê o dinheiro.
-E por que você fala assim, complicado? Nunca vi nenhuma do seu tipinho falar assim.
-Escute, meu bom senhor, eu faço mestrado e tenho uma filha de dois anos para criar por minha conta. Não falo complicado, apenas leio muito e disponho de vocabulário. Estou neste emprego porque me cabe, porque ninguém me oferece nada melhor. Eu nunca consigo nada melhor. Faço isso para ganhar algum dinheiro para pagar as contas, o mestrado e a escola da minha filha. Não tenho família alguma, alguns morreram num desmoronamento há dois meses e os outros se foram num tiroteio tentando defender meu primo, que vivia do tráfico. Moro num casebre com minha filha numa comunidade aqui perto. Eu realmente preciso desse dinheiro. Ainda mais de alguém como você, para quem esse dinheiro não vale nada.
-Por que você me disse isso? E onde aprendeu a cantar?
-Te disse isso para quem sabe você me deixasse ir embora, não te interessa onde aprendi a cantar, me dê o dinheiro, raios!
Ele se enfurece de súbito e acerta-lhe com a mão fechada, com anéis de brilhantes no dedo mínimo. Ela se levanta rapidamente, já tendo se vestido e pego suas coisas.
-Me dê logo esse dinheiro e me deixe ir embora!
-Se não o quê, querida? Você me bate?
-Não, não te bato, não faço nada. Você é o terceiro que não me paga nesta semana. Estou começando a fazer fama de fraca no mercado, agora é que a minha renda despenca de vez. Não me aceitam nunca num emprego, qualquer que seja, por conta de meu histórico e de minha condição social. Não me pague, se não te agradei o suficiente. Tenho que ir para casa, minha filha está sozinha desde que eu, desgraçada, vim para essa mansão de que dispõe o senhor. Se sua mulher descobrir sobre hoje, óptimo, eu estarei na universidade. Assim que terminar o mestrado, farei doutorado e pós-graduações, quem sabe no exterior. Tenho metas de ganhar bolsas de estudo e verbas, poderei viver delas enquanto me livro deste reles lixo que é o meu emprego atual. Pode me bater, faça isso. Muitos já o fizeram. Não me importo, se não me quiseres pagar, há outros que pagam. E muito bem.
O homem encontrava-se em estado de choque, não ousava responder. A mulher avançava nele como uma leoa. Ele, com o rabo entre as pernas.
-Tchau, senhor, não ouse chamar-me novamente.
Ia bater a porta atrás dela, quando o homem a puxou pelo braço. Ao ver seu rosto novamente, lembrou-se de quando a viu no banho. Apaixonou-se de novo pela meiga mulher que havia visto debaixo do chuveiro fazia pouco.
-Escute, não se preocupe se eu te ouvi cantar, não vou falar pra ninguém. Toma, pode ficar com isso. Pra mim não faz diferença.
-Mas é mais do que combinamos.
-É um extra. Isso é pela noite, e mais isso pra você e pra sua filha.
-Certo, obrigada. Estou indo. Tchau.
Fechou a porta da casa e foi embora. O homem foi à janela e acompanhou-a com o olhar, até que sumisse no horizonte. O sol raiava.
Nunca mais se viram, o homem pediu divórcio de sua mulher. Até hoje ele escuta, de vez em quando ao longe, uma voz de violino cantando a primeira suíte de Bach, e cai de amores pela mulher mais maravilhosa que já conhecera.

Nenhum comentário: